
Editado em 13/01/16 às 16h42
O caso de um atleta que se dizia vegano mas, numa entrevista recente, revelou que comia peixe e moluscos de concha em alguns de seus momentos de retiro florestal e tentou questionar o conceito de veganismo deixou muitos vegans brasileiros em polvorosa. Muitos ficaram indignados pela violação dos Direitos Animais promovida por ele ao comer animais e ao mesmo tempo continuar se dizendo “vegano”. Na repercussão dessa história, eu gostaria de abordar dois problemas sérios que vieram à tona com a antiética atitude dele: o mau exemplo que é um esportista se dizer vegano mas consumir alimentos de origem animal às escondidas e as tentativas de flexibilização conceitual e corrupção ético-moral do veganismo.
Pelo que ele deixou a entender, comer carne de animais pescados ou caçados estando num retiro ecológico – mesmo com alternativas vegetarianas à disposição – seria menos danoso aos animais não humanos do que viver consumindo produtos veganos industrializados, e esse consumo no contexto de passar um tempo num ambiente natural seria uma forma de comunhão com a Natureza. Mas fica evidente que ele parece não entender o que realmente é a ética animal, como ela realmente se conecta com a causa ambientalista e como tentativas espiritualistas de distorcer a definição de veganismo são prejudiciais aos animais não humanos.
O mau exemplo do atleta que burla o veganismo
O atleta em questão era visto por muitas pessoas como um louvável exemplo de vegano vitorioso, a prova viva de que vegans não só podem muito bem praticar esportes como também ser campeões em suas modalidades. Ele não queria ser visto como exemplar, mas não percebeu que, querendo ou não, estava sim sendo vislumbrado como inspirador.
Com isso, vem à tona uma cruel sabotagem à reputação dos vegans esportistas e, por tabela, do próprio veganismo. Pelo que ficou evidenciado, há um número desconhecido, possivelmente significativo, de competidores que se dizem “vegans” mas, às escondidas, consomem carne, laticínios, ovos e/ou mel.
Com isso, para muitas pessoas vai ficar obscuro se se pode confiar que aquele esportista vitorioso e exemplar é mesmo vegano ou se ele está obtendo sua energia e nutrientes de refeições antiéticas nos bastidores onde ninguém o vê comendo. E também vai ficar aquela dúvida: será que o vegetarianismo realmente permite que atletas sejam campeões, ou eles precisam enganar seus fãs e obter nutrientes de origem animal para ter desempenho? Alguns irão se perguntar, aliás: será que ser vegan é seguro para a saúde, já que alguns autointitulados “vegans” estão “tendo” que voltar a consumir animais e tratá-los como coisas a serviço dos humanos para ter uma boa nutrição e bons desempenhos nos esportes?
Fica evidente, assim, o atentado explosivo que a atitude irresponsável e antiética desse indivíduo representa para o veganismo. Será trabalhoso reverter esse dano à reputação da saúde vegana, a qual tem sido lentamente construída com tanto esforço de milhares de pessoas.
A tentativa de flexibilização espiritualista do veganismo para torná-lo tolerante ao abate de muitos animais
Como dito, além da lamentável revelação de que come animais de vez em quando, o atleta em questão empreendeu uma tentativa de questionar e flexibilizar o conceito de veganismo. Segundo ele, “nenhum -ismo é saudável”, já que ideologias “-istas” “tornam as pessoas cegas”, e ele é contra o “radicalismo” do respeito aos Direitos Animais. Ele alega, ou pelo menos deixa a entender, que não haveria nada de antiético caçar e pescar animais sem que tenha havido anteriormente exploração animal.
Argumenta também que a pesca com as próprias mãos e instrumentos para fins alimentares é uma forma de “comunhão com a Natureza” e que o consumo de produtos veganos industrializados (mesmo os baratos e simples) seria mais inaceitável do que pescar num ambiente selvagem – mesmo sem ser para uma necessidade extrema de sobrevivência. E tenta dar um quê de “espiritualidade namastê” ao seu conceito particular – na verdade corrompido – de “veganismo”, fazendo-o deixar de ser um conjunto de práticas que visam a oposição à exploração e matança de animais e ser meramente uma forma de comunhão com a Natureza que passa por matar e comer animais no mato.
Sua tentativa de esvaziar a essência ética do veganismo e substituí-la por um “namasteísmo” tolerante ao tratamento de animais selvagens como seres cuja vida não nos interessa respeitar é tão trágica quanto a sabotagem causada na reputação e confiabilidade dos vegans esportistas e da saúde vegana. Traz um “questionamento” que, ao contrário da postura de quem tenta dar ao veganismo uma essência interseccional – que passa pela não aceitação também à exploração humana e aos crimes cometidos por empresas que se dizem “veganas” -, mais exigente, prega a tolerância ao ato de matar animais desnecessariamente, sem qualquer motivo nutricional ou sobrevivencial, em retiros florestais. Tenta fazer o veganismo deixar de ser pelos animais não humanos e torná-lo algo que concerne apenas aos humanos, aos seus sentimentos e interesses – mesmo que de cunho espiritual.
E além de tudo, não serve para quem tem crenças religiosas diferentes da dele. Ele traz a defesa especista – e carnista – dele baseando-se num credo espiritual bastante individual, algo como um sincretismo customizado de espiritualidades da Nova Era com religiões mais tradicionais. E por motivos óbvios esse “novo veganismo” dele não faz sentido nenhum para ateus, cristãos, judeus, umbandistas, candomblecistas, muçulmanos, espíritas, budistas, adeptos de diversas religiões pagãs etc.
É interessante, aliás, perceber que ele não defende que, por exemplo, nos mudemos com nossos cães e gatos para uma casa no meio da floresta e os matemos para comê-los num ritual de comunhão espiritual com a Natureza, mesmo que esse abate não tenha sido precedido pela imposição de uma vida de exploração. Menos ainda ele crê na possibilidade de sacrifícios humanos para esse mesmo fim de inspiração religiosa, mesmo que religiões do passado argumentassem que o sacrifício ritual de seres humanos seria necessário para a manutenção da comunhão entre o povo crente, seu habitat e seus deuses.
Possivelmente ele iria contra-argumentar indignado que não seria justo matar humanos ou animais domésticos mesmo que fosse por motivos de crença religiosa-espiritual. Mas se fizesse isso, estaria entrando em contradição e sendo especista, já que para ele há mais erro em matar um ser humano ou um cachorro num rito na selva do que pescar um peixe e, assim, peixes seriam inferiores aos humanos e aos animais domésticos.
É curioso também perceber que a visão dele sobre “comunhão com a Natureza” não passa por respeitar a vida daqueles que podemos muito bem deixar viver sem prejuízos à nossa integridade, nem pelo simples princípio de “não matar”. Pelo contrário, é uma crença que prega que “dar as mãos à Natureza” é assassinar alguns dos filhos dela – mesmo sem tê-los explorado antes do abate – e substituir as mortes dos animais provocadas pelos impactos ambientais da agricultura e da indústria – as quais ele curiosamente continuava financiando, mesmo que reduzidamente – pelas mortes diretamente causadas pela pesca “ecológica”.
Fica muito claro que ele cometeu um duplo desserviço, uma dupla sabotagem, ao veganismo. E o pior é que ele pretende continuar se dizendo “vegano”, o que implica que ele continuará, mesmo que apenas pelo exemplo individual, “ensinando” que a ética é algo que qualquer pessoa pode distorcer e personalizar para seus próprios interesses e subjetividades e pregando um estilo de vida antieticamente tolerante à caça e à pesca. Assim sendo, algo que realmente é preferível é ele ou desistir dessa tentativa de corromper o veganismo a um “namasteísmo pescador” – o que passa por não se declarar mais “vegano”, algo que ele não é -, ou parar de uma vez por todas de matar animais e levar a sério os Direitos Animais – os quais incluem os fundamentais direitos à vida e à integridade física.