Editado em 07/12/2022
Obs.: Meu caso individual não representa o universo de autistas. Eu não tenho seletividade alimentar nem alergias e intolerâncias a alimentos, ao contrário de milhões de outros autistas, para quem a adesão ao veg(etari)anismo é muito mais difícil ou, por enquanto, até inviável. Quem tem essas restrições alimentares precisa do suporte de um(a) nutricionista especializado(a) em pacientes neurodivergentes e veg(etari)anos, que infelizmente é muito raro(a) – e, quando existe, tende a cobrar caro – no Brasil e no exterior.
Muitas pessoas, em especial autistas, têm dúvidas sobre como é ser um autista vegano.
Se você é neurodivergente e deseja aderir ao veganismo, eu quero ajudar você revelando o essencial da minha vida autista e vegana e respondendo a boa parte das dúvidas que você tem.
Este artigo será essencial para você começar esse processo de veganização, ou se manter vegana para sempre.
O que eu como?
Para entender como é ser vegano, a primeira coisa da qual normalmente se fala é a alimentação.
Pois bem, como você talvez já saiba, como vegano eu não consumo nenhum alimento de origem animal. Eu os substituo por fontes não animais de nutrientes.
No meu caso, eu não tenho seletividade e intolerâncias alimentares, portanto eu tenho uma alimentação um tanto diversificada.
Minhas proteínas vêm, basicamente, da combinação de leguminosas, como o feijão, com cereais como o arroz, combo esse que eu como no almoço. Mais ocasionalmente, eu consumo proteína texturizada de soja refogada.
Já meus carboidratos vêm principalmente dos pães, do arroz, do macarrão e, de vez em quando, da aveia. E a gordura geralmente vem ou de sementes de linhaça, ricas em ômega-3, ou do azeite de oliva, ou de pratos que foram preparados com quantidades moderadas de óleo de soja.
Também costumo comer frutas como mamão, banana e maçã, geralmente misturadas com aveia, amendoim e granola. Além disso, meus almoços frequentemente são enriquecidos com legumes cozidos (cenoura, chuchu e batata inglesa), vinagrete (mistura de tomate, cebola, pimentão e coentro picados com azeite e vinagre) e couve refogada. E bebo bastante água (uns dois litros por dia), café (duas a três xícaras por dia) e sucos como maracujá, limão e goiaba.
Essa é a minha alimentação individual. E o que veganos geralmente comem?
A resposta, falando de maneira mais generalista, é: leguminosas, cereais, frutas, verduras, legumes, óleos saudáveis, sementes e oleaginosas, temperos vegetais para tornar o almoço ainda mais gostoso, carnes vegetais (opcionais, cujas versões caseiras são feitas na maioria das vezes com leguminosas), leites vegetais (também opcionais, feitos a partir de cereais, leguminosas, oleaginosas, frutas etc.)…
Você terá uma ideia melhor do rico universo de alimentos disponíveis para os veganos em sites de culinária vegana.
Mas tenha o cuidado de obter, se possível, orientação de um nutricionista que atenda veganos e vegetarianos. Ele saberá elaborar uma dieta diversificada que atenda às suas necessidades individuais – e, também muito importante, conseguirá adaptar a alimentação do veganismo às suas eventuais restrições alimentares, como alergias e intolerâncias.
Além disso, a vitamina B12, por não estar suficientemente disponível em vegetais, precisa ser obtida por meio de suplementos vitamínicos.
Dê preferência a marcas de suplementos que fornecem mais de 2,4mcg por comprimido, uma vez que suplementos que contenham exatamente essa quantidade de B12 podem não ser suficientes para suprir as necessidades de algumas pessoas, como gestantes e indivíduos que estão com um nível baixo da vitamina no corpo.
E se você tiver dificuldade de se desapegar da rotina de consumir alimentos de origem animal, experimente começar a encarar esses produtos como dotados de impacto ético e ambiental muito negativo, de modo que manter esse costume lhe fará cada vez mais se sentir mal, com mais remorso e peso na consciência e menos prazer e você sentirá a necessidade de substituí-lo.
Você pode obter ajuda para parar de comer carne, laticínios e ovos em meus artigos que mostram como se livrar deles: Se você deseja parar de comer carne, leia este artigo e Se você deseja parar de consumir laticínios, ovos e mel, leia este artigo.
Meus hábitos veganos para além da alimentação
Como você talvez também saiba, o veganismo não fica só na alimentação. Como autista vegano, eu tenho vários hábitos que deixam evidente meu posicionamento ético em relação aos animais não humanos:
- Não consumo nenhum produto com ingrediente de origem animal e/ou de empresa que testa em animais – exceto medicamentos e vacinas;
- Boicoto rodeios, vaquejadas, zoológicos, aquários de exibição pública, jóquei-clubes etc. e as empresas que patrocinam esses eventos;
- Não uso meios de transporte que dependem de animais, como carroças e charretes puxadas por cavalos, nem monto animais, como cavalos e burros, para me locomover seja no dia-a-dia, seja por entretenimento;
- Não compro nenhum animal. Todos os animais que tutelei ou tutelo foram ou são adotados;
- Não confino nenhum pássaro em gaiolas, nem peixes em aquários;
- Produzo conteúdo de conscientização vegana aqui no Veganagente e o divulgo nas redes sociais;
- Reivindico, à minha maneira, o fim do uso de animais como propriedade dos humanos e em prol de interesses humanos;
- entre outras atitudes.
O veganismo é acessível para os autistas em geral? Mesmo para quem tem múltiplas intolerâncias alimentares?
Eu acredito que, com as devidas adaptações nutricionais e comportamentais feitas por especialistas, o veganismo poderá, num futuro próximo, ser adotado por qualquer autista, ou pelo menos pela maioria.
Aquele neurodivergente que tem seletividade alimentar, intolerâncias e alergias a certos tipos de alimentos e questões de sensibilidade sensorial que atrapalhariam na transição a esse modo de vida pode – ou poderá futuramente, se não tiver acesso atualmente – procurar um nutricionista que atenda veganos, vegetarianos e pessoas com restrições alimentares.
Ele saberá como substituir, por exemplo, os alimentos com glúten e aquelas leguminosas e oleaginosas às quais seu corpo talvez seja intolerante ou alérgico.
Mas eu tenho consciência de que o acesso a nutricionistas que entendam ao mesmo tempo de alimentação vegetariana ou vegana e restrições alimentares hoje é um privilégio para poucos.
Por isso muitas pessoas neurodiversas não vão encontrar, a curto e médio prazo, um caminho realmente livre para prosseguir rumo ao veganismo, e por isso poderão acreditar que nunca conseguirão se tornar veganas.
Essa questão é uma das tantas que o veganismo popular, que defende, entre muitas outras pautas, a disseminação do modo de vida vegano a pessoas de todas as classes socioeconômicas, leva em consideração.
Nós veganos populares não só lutamos para que o veganismo, em especial a alimentação abrangida por ele, se dissemine entre os mais pobres.
Também defendemos o SUS das políticas de desinvestimento e sucateamento e reivindicamos que cada vez mais nutricionistas e médicos nutrólogos que entendam de veganismo e dietas restritivas trabalhem na saúde pública.
Com a nossa luta, algum dia haverá doutores suficientes disponíveis para todos os interessados em aderir a esse modo de vida, incluindo os autistas com diversas intolerâncias alimentares e hipersensibilidade a certos alimentos.
“Se eu tenho restrições alimentares e não tenho acesso a nutricionistas que entendam de veganismo e dietas restritivas, o que eu faço então?”
Se você está diante desses empecilhos para uma eventual adesão ao veganismo, o que eu posso lhe aconselhar é pelo menos diminuir o consumo de alimentos de origem animal; eliminar o consumo de produtos não alimentícios não veganos ou pelo menos o máximo possível deles, substituindo-os por alternativas veganas; e passar a adotar cada vez mais dos hábitos veganos que eu mencionei mais acima.
Se você não vê condições de parar já com o consumo de carne e ovos, experimente reduzi-lo ao nível mínimo necessário para atender às suas necessidades nutricionais, optando por suplementos vitamínicos para substituir o máximo possível deles, e, ao mesmo tempo, reforçar o consumo de alimentos vegetais que substituem os nutrientes desses produtos para compensar essa diminuição.
Complementarmente, você não precisa esperar o dia em que poderá eliminar totalmente o consumo de alimentos de origem animal para, por exemplo, começar a boicotar empresas que testam em animais, deixar de ir a eventos de entretenimento que exploram animais, comprometer-se a adotar animais domésticos ao invés de comprá-los e descartar as gaiolas de pássaros e os aquários de peixes – ou lhes dar usos alternativos que dispensem o aprisionamento de animais.
É verdade que, se eu virar vegano e parar de consumir laticínios, isso vai “reduzir os sintomas” do meu autismo?
Ao contrário do que alguns autores capacitistas dizem, dietas sem laticínios e sem glúten não “tratam os sintomas” do autismo, tampouco fazem autistas saírem do espectro.
Como eu já falei no artigo sobre preconceito contra autistas no meio vegano e na resposta à abordagem antiautismo do livro Galactolatria: mau deleite, pesquisadores estudaram as promessas dessas dietas de “melhorar” ou “curar” o autismo e descobriram que elas não funcionam nesse sentido.
Declararam que não há evidências confiáveis de que a ausência do glúten e da caseína do leite enfraqueçam características negativas nossas como a dificuldade de socialização e contato visual, a hipersensibilidade sensorial e a propensão à irritabilidade e à ansiedade.
A ausência de laticínios e glúten traz benefícios à saúde física – e, em alguns casos, mental, mas sem relação com o autismo – apenas de quem já tem intolerância e/ou alergia a ambos.
Então não se preocupe, porque você não vai se tornar “menos autista”, tampouco ser convertida em neurotípica, se abandonar os alimentos de origem animal.
Conclusão
Pelo menos para quem não tem restrições alimentares múltiplas, ser um autista vegano tende a não ser algo tão difícil. Basta você saber e selecionar o que irá comer para assegurar a ingestão diária de nutrientes e, caso tenha dificuldades, procurar um nutricionista que entenda do assunto.
Se você não pode no momento, ou acredita que não pode, por ter intolerâncias como a glúten e a determinadas leguminosas, é possível você pelo menos reduzir o consumo de alimentos de origem animal e adotar aquelas atitudes veganas não vinculadas à alimentação.
Vale a pena você considerar o veganismo, ou pelo menos adotar o máximo possível de comportamentos veganos. Os animais também precisam dos autistas para serem libertados do especismo e da exploração.
3 comments
Robson, sou autista de grau leve (antiga síndrome de Asperger), vegetariano desde 18 de abril de 2019 e vegano desde 30 de janeiro de 2020. Tenho algumas perguntas que, se não se importar, gostaria que respondesse: 1)Conhece algum texto/obra que trata da interseccionalidade entre a causa autista e o libertacionismo animal?2)Acredita que o possível desenvolvimento da carne sintética representa um avanço em relação à causa libertacionista?3)Como lidar com pessoas que, embora abracem a causa animal, revelam-se hostis a causas progressistas ou humanitárias(vide adotar a bandeira do negacionismo da ditadura civil-militar brasileira ou defender um golpe de Estado que leve ao estabelecimento de um regime de exceção?)
Olá, Nicolas :) respondendo:
1. No Brasil infelizmente não conheço nenhum texto anterior aos meus com essa intersecção. Em outros países pode ter algo, embora eu não conheça.
2. Infelizmente não, porque a produção de carne sintética não parte necessariamente de princípios antiespecistas, mas sim da mera redução do sofrimento animal e do impacto ambiental da produção de carne. A disseminação do veganismo popular, que traga a pessoas de todas as classes sociais um modo de vida que não precisa de nenhum produto de origem animal (nem mesmo de imitações sintéticas ou “plant-based”) pra ser viável e promova a ética antiespecista, é muito mais eficaz no sentido de promover a libertação animal.
3. Infelizmente não sei como lidar diretamente com essas pessoas. Aqui no blog e nas páginas sociais, pessoas que manifestam essas crenças odiosas são banidas/bloqueadas.
Em relação à segunda questão, acredito que exista a possibilidade real de adoção da produção sintética em larga escala no futuro, mecanismo que potencializaria a margem de mais-valia relativa por parte da indústria, em razão do da menor parcela de capital(tanto constante, no caso dos insumos de produção, quanto variável, no caso da mão de obra empregada). Nesse caso, embora não precedida por uma mudança de paradigma ético, quiçá favorecesse sua transformação, pela alteração das condições materiais de existência da exploração animal. Tratar-se-ia, portanto, de uma transmutação na própria dinâmica do capital que talvez surtisse um efeito superestrutural.