No meio vegano, há uma discórdia entre duas interpretações distintas do conceito de veganismo.
Para uns, ele é enfático ao abordar apenas o nosso respeito pelos animais não humanos, deixando a consideração moral pelos outros seres humanos de fora do escopo vegano e deixando a pessoa livre para ser ética ou antiética, empática ou insensível, com estes últimos.
E para outros, em momento nenhum ele exclui a humanidade do círculo moral dos veganos, nem torna o respeito a ela meramente opcional.
Nesse embate, quem leva mais a sério e defende de maneira mais apurada, coerente e comprometida os princípios éticos do veganismo?
Convido você a saber a resposta neste artigo.
Os conceitos comumente considerados oficiais do veganismo

Aqui eu abordo três conceitos dados para o veganismo, nacional e internacionalmente:
- O da Vegan Society (VS), do Reino Unido, a primeira entidade vegana do mundo, fundada em 1944 junto com a própria ideia de veganismo;
- O da Sociedade Vegana (SV), brasileira, que para muitos tem a palavra final sobre o que é veganismo;
- O da Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB).
É preciso, aliás, ressaltar: o que está em jogo aqui não é se os conceitos de veganismo dados defendem ativamente os seres humanos, engajando-os diretamente em causas como o feminismo, o antirracismo e o anticapitalismo, mas sim se eles os excluem, opcionalizam o respeito por eles ou não fazem nenhuma dessas duas considerações.
Definição da Vegan Society
Veganismo é um modo de viver que busca excluir, na medida do possível e praticável, todas as formas de exploração e crueldade contra animais para alimentação, vestuário e qualquer outro propósito.
Traduzido da página Definition of veganism do site da VS
Definição da Sociedade Vegana
Veganismo é o modo de vida que busca eliminar toda e qualquer forma de exploração animal, não apenas na alimentação, mas também no vestuário, em testes, na composição de produtos diversos, no trabalho, no entretenimento e no comércio. Veganos opõem-se, obviamente, à caça e à pesca, ao uso de animais em rituais religiosos, bem como a qualquer outro uso que se faça de animais.
Extraído dos textos fundamentais do site da SV
Definição da Sociedade Vegetariana Brasileira
A filosofia do veganismo (não consumo de qualquer produto que gere exploração e/ou sofrimento animal) adota o vegetarianismo estrito no âmbito da alimentação. Por isso, costuma-se também chamar de “vegano” aquele que não consome nenhum alimento de origem animal (carnes, ovos, latícinios, etc.).
Extraído da página O que é vegetarianismo da SVB
A posição de cada uma sobre os seres humanos
Vegan Society
O conceito da VS menciona animais, não explicitamente animais não humanos. E enfatiza a oposição do veganismo a “todas as formas de exploração e crueldade”, deixando essas formas em aberto ao mencionar “qualquer outro propósito” e citar diretamente apenas a alimentação e o vestuário.
Ou seja, o veganismo para a VS abrange alimentação, vestuário e todos os demais tipos de violência. Essa posição deixa a entender que o vegano é contrário à exploração e à crueldade sem se deixar ser seletivo nessa postura.
Não evidencia em nenhum momento que veganos podem respeitar “apenas” os animais não humanos, que apenas as violências contra estes sensibilizam o vegano. Com isso, a posição da VS é de uma ética universalmente abrangente, que repudia a violência não por ser contra os animais não humanos em função de características exclusivamente não humanas, mas sim por seus aspectos antiéticos: ser algo cruel, explorar seres inocentes, causar sofrimento e negar e violar o interesse alheio de viver livre.
Isso é evidenciado ainda mais quando, na página sobre o conceito de veganismo do site da VS, exibe-se que a definição do Memorando e Artigos da Associação, datada de 1979, afirma que esse modo de vida “promove o desenvolvimento e o uso de alternativas livres de animais para o benefício de humanos, animais (não humanos) e o meio ambiente”.
Ou seja, o veganismo também existe para o benefício dos seres humanos. Não no sentido de incluir, por exemplo, o boicote a marcas que promovem publicidade discriminatória ou exaltam o consumismo, mas sim no de ser benéfico para nós, ao invés de algo que existe em eventual oposição à dignidade e bem-estar humanos.
Portanto, a VS deixa claro que não existe essa conversa de que “veganismo é só pelos animais não humanos” e tolera misantropia, machismo, racismo, xenofobia e outros ódios. Seu conceito não é excludente, tampouco concorre com as causas humanas. Pelo contrário, complementa o bem-viver e a felicidade dos seres humanos.
Sociedade Vegana
A frase que constitui o conceito central da SV é mais focada nos animais não humanos do que nos seres humanos. Mas, ao longo do artigo que o oficializa, deixa claro que os veganos são necessariamente compassivos com as necessidades e sofrimentos humanos, nunca seletivos e excludentes em sua postura ética.
Têm um destaque importante os seguintes trechos do texto da página (grifos meus), os quais eu comento:
“Esse modo de vida fundamenta-se ideologicamente no respeito aos direitos animais e pode ser praticado por pessoas de quaisquer credo, etnia, gênero ou preferência sexual.”
O vegano que declara ódio e intolerância a outros seres humanos e/ou promove elitismo está excluindo-os da possibilidade de, usufruindo de sua dignidade individual e seus direitos e liberdades, se tornarem veganos também e aliados dele na luta pelos Direitos Animais.
O princípio vegano da aceitação inclusiva e igualitária de todos os seres humanos, portanto, rejeita atitudes que afugentem ou barrem pessoas não veganas da adesão ao veganismo e da aceitação no mesmo.
“O veganismo não tem relação com crenças políticas nem com preferências musicais, nem deve ser associado a determinada cultura. Trata-se, portanto, de uma prática universal.”
Nesse caso, está claro que o veganismo, embora não seja uma posição oficialmente de esquerda e anticapitalista, também não é afinado com ideologias que defendem as desigualdades sociais como “naturais” e “necessárias” e aceitam discursos de preconceito e exclusão social.
Além disso, abomina posições ideológicas que tornem o veganismo viável para apenas uma parcela da sociedade, de acordo com o princípio da aceitação inclusiva e igualitária.
“Não há como considerar touradas, corridas de animais, rinhas, vaquejadas, cavalhadas, caça, pesca e outras formas de tortura como sendo esportes ou manifestações culturais. Elas são, isso sim, demonstrações grosseiras e cruéis da dominação humana sobre outras espécies.”
Explicita-se aqui a oposição da ética vegana à grosseria, à crueldade e à cultura de dominação, ainda que focada em outras espécies. Mas de forma nenhuma fala “apenas” ou “especificamente” sobre elas.
“O contrário de ser radical é ser moderado. Mas será que é sempre certo sermos moderados? Que imagem devemos ter de uma pessoa que tenha uma visão permissiva em relação a questões como a escravidão, o estupro e tantas outras?”
Considerando que a escravidão, seja explícita ou sutil, ainda hoje é muito presente no capitalismo, ainda que as leis a criminalizem em suas formas mais óbvias; o estupro é uma violência misógina inaceitável e é dada atenção a “tantas outras” violências contra seres humanos, fica claro aqui que a ética vegana tem o compromisso de não desconsiderar nem aceitar a existência da injustiça e crueldade também entre seres humanos.
“Sim, veganos são radicais porque não aceitam de forma alguma a exploração animal, assim como não aceitam de forma alguma a exploração humana. Não aceitar significa fazer algo a respeito, mesmo que isso signifique questionar o modo de vida que estamos acostumados a ter.”
Aqui está a menção mais explícita da oposição dos veganos à exploração humana e, por tabela, a toda e qualquer posição ideológica que tolere ou defenda exploração, dominação e violência contra seres humanos.
É preciso deixar claro, porém, que essa não é uma postura de oposição direta e declarada ao capitalismo, visto que alguns ainda acreditam que ele pode ser reformado e humanizado, como é o caso dos socialdemocratas, dos ecocapitalistas e dos liberais sociais que se consideram de esquerda. Mas serve como atitude de enfrentamento pelo menos do capitalismo desregulado (ou “autorregulado”) defendido por neoliberais, “libertários”, “anarco”-capitalistas e muitos conservadores.
“O segundo passo é tornarmo-nos difusores desse modo de vida. O veganismo deve ser sempre difundido por meio da educação e jamais por campanhas violentas, coercivas ou de mau gosto. As informações transmitidas ao público devem ser sempre confiáveis e bem fundamentadas, pois o veganismo deve ser algo atraente e não repulsivo, deve ser abrangente e não limitador.”
Novamente fica clara a oposição do conceito de veganismo da SV a atitudes de preconceito, ódio, intolerância e exclusão contra outros seres humanos. Soma-se a isso o repúdio a “campanhas violentas, coercivas ou de mau gosto”, como:
- Propagar imagens que comparam pessoas negras escravizadas ou judeus vítimas do Holocausto com porcos, ou mulheres vítimas de violência física (incluindo sexual) com vacas “leiteiras”;
- Elaborar analogias diretas e cruas entre a escravidão humana ou o Holocausto nazista com a exploração animal, atitude que, embora ainda toque positivamente alguns, causa repulsa e indignação em muitos outros e os afasta da causa vegano-animalista. Por outro lado, nesse caso há a interpretação possível como ser inaceitável especificamente brancos fazerem a primeira comparação e não judeus fazerem a segunda;
- Usar de capacitismo, por meio de, por exemplo, comparações indevidas entre pessoas com deficiência intelectual e animais não humanos, para falar dos Direitos Animais;
- Declarações de ódio à parcela não vegana da humanidade;
- Xingamentos como “comedores de cadáver”;
- E ações de defesa de intolerância, repressão e perseguição a religiões como o candomblé, que ocasionalmente promovem sacrifícios de animais. Neste caso, fica aberta a possibilidade de métodos não violentos de promover reformas religiosas que decretem o abandono desse tipo de ritual e, portanto, a extensão da ética vegana a essas fés.
Em resumo, a SV associa explicitamente a ética vegana à compaixão e respeito também por seres humanos, e deixa claro que vegans de direita têm a obrigação moral de deixarem de ser preconceituosos, intolerantes, excludentes e consentidores de crimes, violências, abusos e injustiças contra a vida humana.
Sociedade Vegetariana Brasileira
O conceito de veganismo dado pela SVB, embora seja apenas marginal ao lado do de vegetarianismo, também não especifica em momento nenhum que veganismo é “só pelos animais não humanos”.
Pelo contrário, explicita-o como uma posição contrária à exploração e ao sofrimento de qualquer animal, e não exclusiva ou especificamente não humano.
Ou seja…

Atribuir ao conceito de veganismo um foco absoluto nos animais não humanos, que exclui ou deixa apenas facultativo o respeito aos seres humanos, é distorcê-lo, além de ser uma demonstração de desconhecimento teórico.
E, pior, é desprovê-lo de seu caráter ético, universalista e objetivo e substituí-lo por um mero moralismo subjetivo, seletivo e arbitrário, motivado por misericórdia por animais não humanos em sofrimento, ódio aos exploradores e agressores dos mesmos, opiniões político-ideológicas conservadoras e desejos de autoafirmação individual e desfrutamento de privilégios.
Os conceitos considerados oficiais de veganismo deixam claro que não há motivos para excluir os seres humanos da categoria de animais sencientes. Deixam claro ou subentendido que esse modo de vida é uma posição de empatia e compaixão incondicionais e engajamento contra a violência, a crueldade e a exploração infligidas a qualquer ser que seja capaz de sofrer, sentir dor e manifestar interesse de viver livre.
Assim sendo, aqueles que se dizem “veganos” mas dedicam ódio, intolerância, discriminação, insensibilidade, exclusão moral e pouca ou nenhuma compaixão para com muitos ou “todos” os seres humanos estão abertamente violando os princípios éticos do veganismo. É possível, inclusive, duvidar se são mesmo veganos ou, simplesmente, vegetarianos adeptos do hábito de consumo característico do veganismo.
Veganismo, desde sua concepção em 1944, implica valores como respeito, responsabilidade ética, empatia e compaixão. Negá-los todos a categorias inteiras de seres humanos, tão sencientes quanto os não humanos, é desvalorizar e rasgar o conceito de veganismo em nome de opiniões ideológicas que, no fundo, implicam o desejo, prática e/ou aceitação do mal ao próximo.
8 comments
Olá,
Sou vegano e gostei muito do seu artigo. Parabéns e Obrigado por dividir conosco!
Queria deixar um pedido para futuros artigos. A questão do sacrifício de animais em rituais religiosos e a comparação com o holocausto. Eu concordo com o que vc disse acima a respeito de ambos os temas, mas gostaria de saber mais sobre como o veganismo encara eticamente estas discussões. A questão religiosa é urgente pois está para ser julgada no STF. Já a questão do Holocausto, escravidão, etc, é muito tolerada por veganos pois se considera similar ao que fazem com os animais para consumo, etc.
Fica a sugestão! Abs!
Valeu, Daniel =) E obrigado pela sugestão tb. Abs!
Meu irmao não gosta muito de pessoas no geral e odeia não veganos… Gostaria de se isolar. Não consigo convence-lo de como isso é destrutivo inclusive pra causa animal. As vezes ele entende mas esquece, porque humanos tão sempre aí pra fazer uma cagada nova e reacender o ódio misantropo que eu até entendo. Difícil. Mas tenho medo do que ele está se tornando, porque sei que ódio assim é sempre um caminho de sofrimento puramente destrutivo… E porque eu mesma tenho dificuldade com isso, de ver esperança de evolução pra nossa espécie… Estou a caça de argumentos
Lamento por seu irmão, Isabel. Perceba, aliás, que isso não advém de ele ser vegano, mas sim de ser um misantropo e preconceituoso desde mesmo antes de ter se tornado vegano.
Sem acréscimos só me resta o parabéns.
Valeu, Dênisson =)
Muito bom. Importantíssimo!
Valeu =)