
Editado em 15/12/2022
Um fato é impossível de negar: o veganismo popular (VP) é muito diferente do veganismo tradicional (VT) baseado no abolicionismo animal não interseccional.
O primeiro responde muito bem às limitações e contradições do último, ao ponto de ser essencial para que a luta pelos Direitos Animais e pelo fim do especismo continue tendo chances de dar certo.
Se você ainda conhece pouco a vertente popular, convido você a conhecer mais do que ela tem a oferecer e por que se destaca na coerência e eficácia em contraste com a corrente tradicional, que rejeita intersecções de causas.
Conheça, a seguir, dez grandes diferenças entre o VP e o VT e como elas fazem o primeiro, conforme cresça em números e força, tender a ter mais sucessos do que o último.
As diferenças entre o veganismo popular e o tradicional
1. Libertação animal e humana
O veganismo tradicional acredita na possibilidade de libertar apenas os animais não humanos. Não valoriza a necessidade de se combater também a opressão contra minorias políticas humanas – mulheres, pessoas não brancas, LGBTQIAP+, trabalhadores, pessoas com deficiência, pessoas pobres, minorias religiosas e irreligiosas, povos marginalizados etc.
Considera OK as pessoas não serem mais especistas mesmo que permaneçam preconceituosas, apoiadoras de hierarquias sociais e morais humanas e defensoras de um status quo injusto e violento.
Enquanto isso, o veganismo popular considera que a luta pela libertação animal só dá certo e faz sentido se vier acompanhada da defesa da libertação humana.
Mesmo que a pessoa vegana popular priorize a defesa dos animais não humanos individualmente, reconhece as outras lutas como dotadas do mesmo valor e importância. Discorda que os humanos mereçam ser libertados depois ou antes dos não humanos.
2. Público-alvo
O VT não tem muita preocupação com o tamanho do seu público-alvo. Por isso, tende a priorizar aquelas categorias cujos privilégios sociais lhes permitem aderir ao modo de vida vegano – ou pelo menos aos hábitos de consumo antiespecistas – a curto prazo, como pessoas brancas de classe média sem deficiência.
Já o VP, ao lutar contra as opressões humanas e substituir as estratégias popularmente rejeitadas do VT, busca fazer com que o maior número e diversidade possível de seres humanos esteja no público-alvo da conscientização libertacionista e adquira as devidas condições para aderir ao veganismo.
3. Adaptabilidade, sem flexibilizar o antiespecismo
O VT é muito centrado num padrão elitista de consumo vegano, derivado da classe média branca das grandes cidades europeias, norte-americanas e israelenses.
Esse modelo é focado em produtos industrializados que substituem os alimentos de origem animal e em alimentos “natureba” gourmetizados.
O VP, por sua vez, defende que o veganismo seja adotado da maneira mais adequada possível para cada categoria social.
Por exemplo, pessoas pobres e/ou do interior são incentivadas a adotar um veganismo baseado em produtos preferencialmente saudáveis, de baixo processamento e da estação, com preços que elas podem pagar ou que elas mesmas podem cultivar na horta doméstica ou na roça familiar ou comunitária.
E o veganismo de uma minoria étnica, como indígenas e quilombolas, é conectado com as tradições culturais e espirituais da seu povo. Busca conciliar as crenças, valores e costumes locais com o propósito de reinterpretar e igualitarizar a relação moral entre os seres humanos e os animais não humanos.
4. Anticapitalismo X crença no apoio do capitalismo
O VT crê que é possível adaptar o capitalismo ao propósito de diminuir gradativamente a exploração dos animais.
Acredita que não é necessário combatê-lo e afrontar os seus valores – entre eles a busca pelo lucro e pelo crescimento infinito e a legitimação da dominação dos trabalhadores por seus patrões – para que a libertação animal conquiste grandes vitórias.
Isso se reflete sobretudo quando ativistas da vertente defendem que as indústrias e o agronegócio coloquem a ética acima do lucro e abandonem políticas especistas, seja por uma eventual benevolência dos empresários, seja pela pressão de uma população vegana futuramente muito grande, seja pela força da lei.
Já o veganismo popular é anticapitalista, alinhado com o marxismo ou o anarquismo. Percebe o que veganos de direita, centro e centro-esquerda têm dificuldade de notar: os elos entre o capitalismo e a exploração animal e as limitações do consumo vegano e do ativismo libertacionista num mundo em que especismo e capitalismo se fortalecem mutuamente.
Um exemplo desses elos é que o capitalismo elevou imensamente a magnitude e poder da exploração animal, mesmo que o especismo já existisse antes da Revolução Industrial e da colonização das Américas.
E uma das limitações é que a maioria das indústrias só veganizará sua linha de produção se isso trouxer lucros significativos, quando a maioria da humanidade se tornar vegana libertacionista e/ou quando o lobby ruralista e as corporações alimentícias sofrerem derrotas políticas das quais nunca mais consigam se recuperar.
Portanto, sua posição é que a libertação animal completa tende a ser inviável no mundo capitalista como conhecemos hoje.
5. Direitos Animais X minorias políticas humanas?
O VT não tem nenhum cuidado se a defesa dos Direitos Animais passa por cima da integridade das minorias políticas e ignora-lhes as especificidades sociais, econômicas e culturais.
Isso é percebido quando vemos muitos de seus adeptos:
- Defenderem que religiosos de matriz africana que sacrificam animais sejam presos ou multados e seus terreiros sejam fechados;
- Não se importarem em trazer alternativas dignas de trabalho para ex-carroceiros;
- Defenderem não que os cruéis testes em animais sejam abolidos, mas sim que suas vítimas passem a ser presidiários humanos;
- Divulgarem o padrão de consumo vegano euro-americano como se fosse o único veganismo possível;
- Insistirem que “basta só querer” para qualquer ser humano aderir a esse modelo de hábito de consumo a qualquer momento, não importa se for, por exemplo, uma pessoa passando fome ou um autista com severas intolerâncias alimentares.
Em contraste, o VP é totalmente contra a defesa dos Direitos Animais violar os Direitos Humanos. Isso se manifesta, por exemplo, respectivamente:
- Na oposição à criminalização e repressão policial dos sacrifícios de animais em religiões de matriz africana. Defende, ao invés, o protagonismo de negros afrorreligiosos veganos em debater internamente sua tradição e reformá-la quando necessário;
- Na defesa de que, juntamente com a proibição do uso de tração animal em carroças, sejam sempre dadas fontes de renda substitutivas que libertem os ex-carroceiros do subemprego e da pobreza;
- Na substituição total dos testes em animais por métodos éticos que não causem sofrimento e morte a mais ninguém;
- Ao promover formas decoloniais de veganismo;
- Ao reconhecer e buscar solucionar os obstáculos que impedem muitas pessoas de se tornarem veganas, defendendo, por exemplo, a capacitação de nutricionistas pró-veganos para atender pessoas com restrição alimentar severa, a multiplicação desses profissionais no SUS brasileiro e o combate à miséria e à insegurança alimentar dos mais pobres.

6. Discursos e atitudes preconceituosos
A vertente tradicional nunca teve a preocupação de combater a opressão contra as minorias humanas.
Tanto é que sites e páginas libertacionistas não interseccional promovem discursos preconceituosos (mencionados no item anterior e no próximo) ocasionalmente, quando acreditam que os fins justificam os meios. E minorias como os autistas costumam não se sentir bem-vindas quando interagem com veganos que padecem dessa falta de consciência.
Já o veganismo popular repudia completamente o preconceito dentro da comunidade vegana. Repreende sempre que algum comportamento do tipo é praticado por algum vegano.
7. Comparações entre a exploração animal e atrocidades contra minorias humanas
O VT é adepto incondicional das comparações explícitas entre as violências contra os animais não humanos e aquelas contra minorias humanas.
Por exemplo, é muito comum equiparar a pecuária ao Holocausto nazista e à escravidão de pessoas negras, por mais consequências negativas e rejeição que isso traga.
O VP, ao contrário, condena essa estratégia. Critica-a como contraproducente e nociva para a causa libertacionista, por, entre outros motivos, ofender e afugentar pessoas de minorias que poderiam pensar melhor na questão da exploração animal se tivessem recebido mensagens mais adequadas.
8. A associação entre exploração animal e humana visa libertar também os humanos?
O VT, mesmo quando discursa sobre a exploração humana na pecuária, na pesca e em outras atividades econômicas especistas para conscientizar os não veganos, foca em libertar só os animais não humanos.
Pouco ou nada diz sobre o que será feito com os trabalhadores que atualmente dependem dos trabalhos especistas.
Paralelamente, o VP, sempre quando fala sobre esse problema, intenciona libertar tanto os animais não humanos quanto os seres humanos.
Preocupa-se em dialogar com os trabalhadores das fazendas de rebanho, dos frigoríficos, das granjas, dos abatedouros, dos barcos de pesca, dos curtumes, dos rodeios e vaquejadas, dos apiários etc. e encaminhá-los a algum trabalho livre de crueldade e com condições dignas.
9. Por qual futuro se luta?
O futuro pelo qual o veganismo tradicional luta é simplesmente um sem especismo, independente de as opressões entre humanos continuarem e a maioria das coisas continuar como estão.
No máximo diz, sem o devido aprofundamento, que as outras opressões cairão como consequência da queda da exploração animal, ou que seus adeptos passarão a defender os outros humanos em seguida.
Só que isso se contradiz com o fato de grande parte dos veganos tradicionais serem preconceituosos contra muitas minorias humanas. Ou seja, o antiespecismo não os faz discriminar e oprimir menos.
Enquanto isso, o futuro pelo qual o veganismo popular luta é um no qual não só os animais estarão livres das violências do especismo e da domesticação.
Os seres humanos também viverão de maneira igualitária, com justiça social, sustentabilidade e livres das hierarquias morais e sociais que fomentam a violência e inferiorização contra os trabalhadores, povos marginalizados e demais minorias políticas.
10. A necessidade de lutar contra várias opressões
O VT não percebe, exceto em uns poucos momentos oportunos, que tudo o que acontece entre os seres humanos, como as desigualdades sociais, a exploração capitalista, a obsessão empresarial pelo lucro e pelo acúmulo de riquezas, a aprovação e sanção de retrocessos por políticos de direita e os discursos e crimes de ódio, tem um efeito fortalecedor na tradição econômica da exploração animal.
Defende que os veganos lutem unicamente pelos animais não humanos, ao ponto de hierarquizar as lutas colocando a antiespecista como “mais importante e urgente” do que as contra outras opressões.
Já o VP tem uma visão interseccional que vê essas conexões. Defende que as pessoas combatam, na medida do possível para cada uma delas, tanto as violências contra os animais quanto contra as que vitimam minorias humanas.
Exige que mesmo quem optou individualmente por priorizar lutar pelos animais não humanos entenda, respeite e apoie os antiespecistas que se focam nos movimentos sociais humanos.
Conclusão
A partir dessas diferenças, podemos perceber que o veganismo popular tem uma visão bem mais aprofundada e interligada do que a vertente tradicional.
Ao mesmo tempo, notamos o quanto esta última, por sua limitação de estratégias, público-alvo e coerência ética e ideológica, tende a colecionar poucos êxitos e muitas derrotas.
Por isso, eu aconselho a você: conheça melhor e considere o veganismo popular. Ele supera todas as restrições e incoerências do veganismo tradicional. Combate o especismo em sua raiz e busca tornar este mundo um lugar melhor para todos, sejam animais não humanos ou humanos.
Nota
Sobre o título do artigo, eu pessoalmente prefiro usar o termo libertacionismo no lugar de abolicionismo no contexto dos Direitos Animais, pelos motivos que eu falo nesse artigo. Mas tive que usar abolicionismo no título e na introdução por essa palavra ser muito mais fácil de se achar nos sites de busca e libertacionismo ser usado muito raramente por outros veganos.
6 comments
Oi Robson tudo bem?, então, uns dias atrás eu acabei vendo um comentário de uma pessoa que falava que carne feita 100% a pasto matava menos animais que uma alimentação vegana, se não for muito incomodo você poderia fazer um post sobre isso?
Oi Vitor, posso escrever sim algo a respeito, obrigado pela sugestão.
Ah, e eu já li um comentário de um cara que ele fala que lavouras de soja, trigo, arroz, feijão, ervilha, lentilha, quinoa, grão de bico, batata, mandioca, cacau, etc matam mais insetos, larvas, minhocas, pássaros, aves, animais selvagens do que os frigorificos. você também poderia fazer um post sobre isso?
Pode ser :)
Excelente texto, muito obrigada!
Me tornei vegana há pouco tempo e estava me sentindo não contemplada por me deparar com opressões a minorias e pelas “boas novas” de produtos “veganos” ultraprocessados.
Saber mais sobre o VP é uma satisfação.
Valeu, Elisa :D