
Editado em 12/12/2022
Aviso de conteúdo: Este artigo menciona temas pesados, como misoginia, eugenia, racismo, fascismo e intolerância religiosa. Leia este artigo apenas se estiver segura de que não sofrerá gatilhos psicológicos. E os links referidos na menção a cada discurso de ódio são de críticas, não exemplos deles.
Na década de 2000, um promissor movimento entrou em ascensão nos Estados Unidos e chegou, em menor escala, ao Brasil: o neoateísmo, também conhecido como antiteísmo ou novo ateísmo.
Ele trazia missões como conscientizar as pessoas de que há vida e ética fora das religiões, denunciar o lado destrutivo e opressor da fé e defender o Estado laico, o humanismo secular e o ceticismo contra pseudociências.
Parecia que se consolidaria em pouco tempo como um grande movimento social. Mas algo deu muito errado e, na década de 2010, ele sofreu uma debandada, desandou e se transformou naquilo que antes combatia.
Enquanto isso, o movimento vegano mainstream está sofrendo uma liberalização e direitização e a consequente flexibilização e desmonte de seus princípios éticos e reivindicações políticas. Corre um risco de ter um destino assustadoramente parecido com o do neoateísta.
Como opositor dessa guinada ideológica à direita neoliberal e conservadora, o veganismo popular tem a missão de salvar a bandeira vegana dessa decadência.
Tendo isso em vista, convido você a saber o que ocorreu com o neoateísmo, como o mesmo pode acontecer com o veganismo e como a nossa luta como veganos populares deverá evitar esse eventual fracasso.
O que aconteceu com o neoateísmo
Antes de saber o que aconteceu com o neoateísmo, vamos relembrar brevemente como ele surgiu e cresceu e o que defendia.
Segundo David Sloan Wilson, o movimento neoateísta como conhecemos surgiu nos Estados Unidos em 2001, tendo como gatilhos a política conservadora do então presidente George W. Bush de misturar cristianismo com política e os atentados de 11 de setembro, cometidos por fundamentalistas islâmicos.
Ganhou muita força ao longo da década de 2000 com o lançamento de livros como Deus: um delírio, de Richard Dawkins; Quebrando o encanto, de Daniel Dennett; Carta a uma nação cristã e O fim da fé, de Sam Harris; e Deus não é grande: como a religião envenena tudo, de Christopher Hitchens. Tanto foi que esses quatro autores foram conhecidos como “os Quatro Cavaleiros do Ateísmo” e encabeçaram o movimento nos EUA.
Adotou missões como:
- Quebrar o tabu de questionar e refutar racionalmente crenças religiosas e as mitologias monoteístas;
- Defender os ateus, enquanto minoria política, do preconceito, da discriminação e da imposição da fé alheia;
- Denunciar a doutrinação religiosa de crianças, desprovidas da capacidade de escolher aceitar ou rejeitar a fé ensinada e questioná-la, como uma violação de direitos fundamentais;
- Promover a razão, a ciência, o humanismo secular e o ceticismo científico;
- Mostrar ao mundo que é perfeitamente possível ser um ateu feliz e de bom coração, derrubando a crença preconceituosa de que não existiria felicidade nem princípios éticos sem a crença em uma ou mais divindades;
- Combater o fundamentalismo religioso, principalmente o cristão e o islâmico;
- Revelar à sociedade os crimes e atrocidades cometidos ao longo da história humana em nome de deuses e religiões, principalmente pelo cristianismo;
- Lutar por um futuro em que a humanidade não precisasse mais de religiões e crenças teístas e se regesse por meio do humanismo secular, da razão, do ceticismo e das ciências naturais.
Era um movimento que prometia revolucionar a mentalidade humana. Desafiava tradições opressivas e vislumbrava uma felicidade livre das amarras religiosas e conservadoras. Conseguiu desconverter milhões de religiosos e teístas tornando-os ateus ou no mínimo irreligiosos.
A decadência neoateísta
Só que, a partir do final daquela década, algo começou a falhar e o movimento neoateísta começou uma dolorosa decadência, nos EUA, no Brasil e em muitos outros países.
Surgiram denúncias de machismo, assédio e abuso sexual em congressos neoateístas, as quais os homens que encabeçavam tais eventos tentaram acobertar. Os próprios “Cavaleiros do Ateísmo”, como denunciaram ateias feministas como Rebecca Watson, demonstravam ser tão misóginos quanto a direita cristã.
Isso só foi piorando. O ódio a mulheres de uma parte dos grandes formadores de opinião neoateus foi se tornando cada vez mais explícito e gritante. E foi sendo acompanhada por incontáveis discursos de ódio islamofóbicos, racistas, supremacistas brancos, transfóbicos, eugenistas, capacitistas, entre outros absurdos.
Certos grupos neoateístas se tornaram verdadeiros grupos de ódio a religiosos e minorias étnicas e passaram a insultar as religiões e espiritualidades de maneira completamente irracional e intolerante. Chegou-se ao ponto de a página de uma grande ONG brasileira do tipo ter sido banida do Facebook por discursos de ódio.
Ao mesmo tempo, influenciadores neoateus que outrora apontavam falácias e vícios pseudocientíficos nos discursos dos outros passaram a adotá-los de maneira quase compulsiva, em discursos “politicamente incorretos”, machistas, antiveganos e especistas, neoliberais, eurocêntricos, etc.
Assumiram-se reacionários e defensores fundamentalistas do livre mercado tanto quanto os cristãos fanáticos que poucos anos antes combatiam.
Corromperam a sua antiga paixão pela ciência, pela razão e pela defesa das liberdades civis. Passaram a apoiar absurdos há muito tempo refutados e relegados à pseudociência ou fortes candidatos a esse rebaixamento, como a eugenia, o essencialismo “biológico” de gênero, o livre mercado, a inferioridade “biológica” da mulher, o uso racista dos testes de QI, o racismo “científico”, o negacionismo histórico conservador etc.
Enquanto isso, a partir de 2017, o então presidente estadunidense Donald Trump implementou políticas que tratoraram a laicidade do Estado. Porém, ao contrário do que aconteceu na época de George W. Bush, dessa vez os velhos figurões do neoateísmo estavam do lado do extremista. Apoiaram as suas incitações e práticas de ódio racial, étnico, misógino e religioso e supressão de direitos e liberdades. E não só isso, como também se aliaram à tendência nazi-fascista Alt-Right.
Diante de tamanha degradação política e ética, inúmeros ateus, principalmente mulheres, pessoas racializadas e LGBTQIAP+s, declararam não se identificar mais com o movimento e o abandonaram, passando a se considerar simplesmente ateus. Daí ele perdeu a maior parte da força que tinha perante a sociedade estadunidense e também a brasileira, tornando-se um movimento de pouca relevância.
Afinal, o que pretendia ser a antítese ética, filosófica e política do fanatismo religioso se tornou um arremedo ideológico igualmente fundamentalista e reacionário, sendo a única diferença a ausência de crença em um deus.
O que está acontecendo com o movimento vegano – e por que isso parece com o que houve com o neoateísta

Uma degradação parecida está acontecendo na parcela mainstream do veganismo, ou seja, aquela que aparece na mídia e em alguns grandes sites de notícias veganas sendo divulgada como “o veganismo”.
Essa vertente, que podemos subdividir em veganismo liberal e veganismo libertacionista tradicional, tem tido algumas tendências no mínimo preocupantes.
A mais notável tem sido a capitulação perante as multinacionais exploradoras e abatedoras de animais, como JBS, Marfrig, Nestlé, Unilever, Burger King e McDonald’s. Os veganos liberais deixaram de se opor a essas empresas e combater as práticas delas de exploração animal – com exceção das que envolvem crueldade extrema -, destruição ambiental e opressão trabalhista.
Passaram a incentivar seus produtos vegetarianos, mais precisamente carnes, sanduíches e leites ultraprocessados à base de plantas, e elogiá-las por essas pequenas concessões que, apesar disso, estão longe de representar um compromisso de banir políticas especistas, ecocidas e destrutivas.
Outro costume crescente é o elogio a corporações de varejo que adotam políticas de “bem-estar animal” na escolha dos fornecedores de alimentos de origem animal. Ao invés de exigir o banimento, ainda que gradual, da exploração animal, os liberais pragmáticos optaram por negociar com essas empresas que apenas “diminuam o sofrimento animal” sem abolir suas causas.
Grande parte do público vegano liberal também deixou de defender ativamente o fim dos testes em animais. Agora relativiza e justifica a continuidade dessa prática cruel e diminui quem continua lutando contra ela.
Complementarmente a isso, cada vez mais vegetarianos se autorrotulam “veganos” – e assim são reconhecidos pela vertente liberal – mesmo sem parar de ir a zoológicos, comprar filhotes de animais domésticos, usar roupas de lã de ovelha, criar peixes em aquários, passar férias em hotéis-fazenda com animais etc. Para piorar, uma parte dessas pessoas usam até mesmo falácias antiveganas em resposta aos questionamentos antiespecistas de seus hábitos.
Ou seja, o especismo e as forças capitalistas conseguiram se apoderar de uma fatia enorme do movimento vegano. Tornaram o que originalmente era um modo de vida marcado por fortes princípios éticos antiespecistas num simples hábito de consumo baseado em ultraprocessados e indiferente à violação de direitos humanos e animais por grandes empresas.
Paralelamente, a vertente tradicional, que reluta em se liberalizar e ainda defende a libertação animal mas se opõe à interseccionalidade e radicalidade do veganismo popular, tem tido seus próprios problemas de decadência ética.
Um número muito grande dessa população vegana, incluindo influenciadores e líderes ativistas, tem aderido a ideologias políticas defensoras da conservação do estado de coisas, como o conservadorismo e o neoliberalismo, semelhantemente ao que houve com vários figurões neoateus.
Uma parcela de antigos formadores de opinião veganos deixaram cada vez mais explícitas suas opiniões cheias de ódio e preconceito, sobre os movimentos sociais, as ideologias de libertação e as minorias políticas. Isso incluiu, em alguns casos, incentivos à intolerância contra veganos populares.
Essas pessoas frequentemente são aplaudidas por um grande público seguidor ao reafirmarem posicionamentos machistas, LGBTfóbicos, capacitistas, racistas, de intolerância religiosa, xenofóbicos, punitivistas, ecofascistas, bolsonaristas (desative o javascript na página caso algum paywall impeça você de ler) etc.
Ou seja, assim como o neoateísmo, essa enorme parcela do movimento vegano tem se tornado aquilo que originalmente se prestava a combater: uma agremiação de pessoas com posturas preconceituosas e antiéticas que conservam e pioram, ao invés de enfrentar, a opressão que antes se queria extinguir.
Como reação, muitos defensores dos Direitos Animais desistiram do rótulo de veganos, apesar de não terem retomado práticas especistas, ou abandonaram o trabalho de disseminação do veganismo. E o próprio futuro almejado de erradicação do especismo e libertação dos animais da exploração ficou seriamente ameaçado.
A importância do veganismo popular para deter essa decadência
Tendo como um dos objetivos salvar o movimento vegano dessa degradação político-ideológica, o veganismo popular está atuando com cada vez mais força e números.
Ele se opõe às tendências conservadoras e pró-mercado que têm ameaçado a luta pelo fim da exploração animal. Denuncia o reacionarismo e o liberalismo elitista que restringem o público-alvo da conscientização vegana e minam a coerência da mesma.
Luta para que o veganismo permaneça exigindo que as empresas eliminem, ao invés de apenas “suavizar” e tornar mais palatáveis, suas práticas especistas. Fortalece os princípios éticos e políticos do modo de vida, de modo que todas as opressões que se ligam à exploração animal, como a de trabalhadores, a destruição do meio ambiente, o genocídio negro e indígena e o nutricídio, também sejam combatidas.
Divulga o modo de vida vegano para que as pessoas o abracem por um mundo sem especismo, nunca por motivos individualistas e consumistas, e nunca cedam na luta contra os inúmeros crimes e abusos das grandes empresas, incluindo a cooptação dos veganos liberais.
Promove, como antítese do apelo “estratégico” aos ultraprocessados à base de plantas, uma alimentação saudável, democraticamente produzida, empoderadora da população trabalhadora e pobre. Defende que o veganismo tenha mais frutas, legumes e verduras e menos carnes vegetais repletas de aditivos químicos produzidas pelo oligopólio alimentício.
Com tudo isso, uma pessoa adepta do veganismo popular tende a não cair na flexibilização ideológica perante o especismo e outras opressões. Muito dificilmente se tornará uma pessoa incoerente, que grita por libertação para alguns animais enquanto é indiferente a tratarem seres humanos de minorias políticas como lixo.
Com a sua contribuição, pelo menos uma parcela significativa do movimento vegano permanecerá fiel aos seus objetivos políticos, em contraste com aquela mais à direita que largou a essência antiespecista e não violenta do mesmo.
Conclusão
Se depender do veganismo popular, não acontecerá com nós veganos o que ocorreu com os maiores influenciadores neoateus. Nunca deixaremos de defender um futuro com animais não humanos e seres humanos libertos.
Não deixaremos que o bonito movimento antiespecista aceite o especismo, esqueça os seus princípios éticos e políticos e se permeie com discursos preconceituosos que, além de afugentar o público-alvo, inviabilizam o objetivo de acabar com a exploração animal.
Vamos fortalecer cada vez mais o veganismo politizado. Aprendamos com os erros do neoateísmo, sobre por que ele falhou severamente no enfrentamento às opressões de origem religiosa e passou a apoiá-las ou consenti-las.
Lutemos para que o veganismo esteja a salvo do mesmo destino, mesmo que uma parcela dos que se consideram veganos já tenha virado meros vegetarianos especistas e aceitadores das demais opressões.
6 comments
Olá Robson tudo bem?, então esse meu comentário não tem nada aver com a materia em si, eu só to passando aqui para te avisar sobre um canal chamado Vitor Ferreira na qual é sobre anti-veganismo, e eu to te falando isso para você ter cuidado com ele tá legal? Tenha Bom dia
Opa, valeu pelo alerta, vou ter esse cuidado sim. Abs!
O que ocorreu com os arquivos de “pérolas carnistas”? Sinto falta delas…
Oi, Nicolas, eu deletei todos os posts de pérolas antiveganas/carnistas já há alguns anos. Aquele tipo de postagem conflitava com a missão conscientizadora do blog, pelo desagradável tom de deboche e sarcasmo que as respostas às pérolas traziam e também porque aqueles prints eram nocivos ao psicológico de muita gente, principalmente quem tem histórico de ter sofrido vegafobia e adquirido traumas com isso. Sem contar que eles tinham pouquíssimas visitas e o conteúdo de respostas debochadas a pérolas de estupidez era muito datado, de uma época que não se tinha a mesma mentalidade de hoje (o começo da década de 2010).
Olá, Robson. Tudo bem?
Gostaria de saber se há como você disponibilizar as referência bibliográficas utilizadas no texto. Especificamente, me interessa saber mais sobre essa “linha do tempo” que você traçou sobre o grupo neoateísta.
Grato.
Oi, Jonas, o artigo já tem os links de referência dentro do conteúdo.